Por Dr. Robson Silveira
Estamos vivendo uma pandemia gerada pelo novo coronavírus que se alastrou por todo o mundo e essa situação está afetando pessoas, governos, empresas, e traz consequências também ao mercado de seguros.
O seguro tem um papel social importante no sentido de amenizar as perdas financeiras e existem muitas dúvidas a respeito das coberturas securitárias, à medida que os riscos de epidemias e pandemias são riscos excluídos na maioria dos contratos de seguros vigentes no país, dos mais diferentes ramos, incluindo os seguros de pessoas, seguros de viagem e seguros de danos.
Em regra, cada seguradora redige suas cláusulas contratuais como quer, de acordo com a sua política de aceitação de riscos, razão pela qual vemos informações contraditórias no mercado. A maioria das seguradoras excluem as perdas associadas a epidemias e pandemias; e algumas seguradoras, demonstrando alinhamento com o princípio da função social dos contratos, em especial do contrato de seguros, estão manifestando publicamente que não farão exclusão de cobertura para as perdas decorrentes do COVID-19. Infelizmente, são a minoria.
Assim, considerando que as perdas financeiras direta ou indiretamente relacionadas a esta pandemia devem chegar a valores exorbitantes, com forte impacto na economia brasileira, temos que refletir com serenidade a respeito das coberturas securitárias para os seguros de pessoas, em especial os seguros de vida, e os seguros de danos, que em regra excluem as coberturas nos seus clausulados, os quais são aprovados pela SUSEP.
Logo, a maioria das seguradoras poderá vir a negar indenizações em seguros de vida nos casos de morte causada pelo novo coronavírus, assim como nos seguros de saúde em relação ao custeio do tratamento médico, além das inúmeras coberturas no âmbito dos seguros de danos, o que poderá acarretar uma disputa litigiosa entre segurados e seguradoras, porque sob o viés jurídico existem outros elementos a serem considerados que vão muito além da existência de cláusulas contratuais de riscos excluídos previstos apenas nas chamadas condições gerais do seguro, que na imensa maioria dos casos não são entregues aos segurados, bem como, não constam na proposta e na apólice de seguro, não sendo, portanto, de conhecimento dos segurados.
Como tenho dito nos ciclos de palestras para corretores de seguros em todo o país nos últimos anos, o seguro deve ser visto como um negócio jurídico, razão pela qual os segurados deveriam ser adequadamente informados das condições contratuais, em especial dos riscos não cobertos no momento da contratação do seguro, mediante assinatura de um contrato com informações claras e em destaque, mas isso não ocorre na prática, salvo em raríssimas exceções.
Mas, os problemas não estão limitados à vulnerabilidade informacional do consumidor de seguros. Nos seguros de vida, a exclusão do risco de epidemias e pandemias, que hoje é uma das maiores dúvidas no mercado de seguros, no nosso entender não faz sentido.
Isso porque, as cláusulas contratuais, para serem idôneas e válidas, não podem contrariar as disposições legais e nem a finalidade do contrato de seguro, pois os mesmos não vivem isolados e alheios ao ordenamento jurídico vigente. E, nestas situações também não há que se falar em agravamento de risco, pois o seguro de vida, conforme já foi reconhecido pela jurisprudência, inclusive no STJ, é um ramo que tem uma cobertura ampliada, sendo vedadas, por exemplo, a exclusão de cobertura nas hipóteses de danos decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas (Carta Circular SUSEP n.º 008/2007).
Assim, as cláusulas de exclusão nos seguros de vida são mais raras, o que se estende aos casos de danos por epidemias ou pandemias, como já está sendo reconhecido por algumas seguradoras, visto que não podem esvaziar a finalidade do contrato, à medida que é da essência do seguro de vida um contínuo e permanente agravamento de risco segurado, conforme reconhecido pelo STJ no REsp 1665701, até mesmo porque é uma modalidade de seguro que cobre, observado o prazo de carência, inclusive o suicídio do segurado, o que comprova que a cobertura neste ramo de seguro é mais ampla.
Além disso, assim como ocorre em relação aos demais ramos de seguro, a validade das cláusulas de exclusão de cobertura em razão de epidemias ou pandemias passará pela análise dos valores constitucionais e pela funcionalização dos institutos de direito civil.
Não basta a seguradora alegar que o risco está expressamente excluído. A liberdade de contratar está relacionada a liberdade de celebrar o contrato quando quiser e com quem quiser, mas a liberdade contratual está relacionada com o conteúdo contratual, ou seja, pela finalidade do contrato, sopesando o contexto fático de cada caso e a realidade de como os negócios jurídicos desta natureza são celebrados.
Quase sempre os contratos de seguro são contratos de adesão, não sendo admitidas cláusulas contratuais exoneratórias e abusivas, ainda que não seja o caso de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, em casos excepcionais. Nos termos do art. 421 do Código Civil, o direito contratual brasileiro deve observar o princípio da função social dos contratos, e nos contratos de seguro com ainda mais razão, pois a função social é uma cláusula geral que decorre do princípio da boa-fé objetiva e do princípio constitucional dos valores da solidariedade e da construção de uma sociedade mais justa e mais solidária.
A cláusula de exclusão de riscos decorrentes de epidemias ou pandemias, é uma cláusula exoneratória e não apenas uma cláusula limitativa, pois acarreta o esvaziamento do núcleo do contrato nos seguros de vida e é uma lesão à natureza do próprio negócio jurídico, pois representa uma renúncia antecipada à garantia securitária, violando a norma do art. 424 do CC.
Ainda é oportuno considerar que a abusividade contratual não ocorre exclusivamente nas relações jurídicas de consumo, conforme definido pela III Jornada de Direito Civil STJ 172: “As cláusulas abusivas não ocorrem exclusivamente nas relações jurídicas de consumo. Dessa forma, é possível a identificação de cláusulas abusivas em contratos civis comuns, como, por exemplo, aquela estampada no CC 424.” Dito isso, e considerando que é plausível imaginar que há uma tendência de que muitas perdas não sejam cobertas, inevitavelmente o setor securitário deverá ser bastante impactado por litígios jurídicos, pois entre a posição técnica adotada pela maiorias das seguradoras e o entendimento judicial e jurisprudencial, ainda existe uma distância bastante acentuada.
* Robson Silveira é palestrante e advogado especialista em Direito de Seguros e Responsabilidade Civil, além de sócio da Robson Silveira Advogados – www.robsonsilveira.adv.br.
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